domingo, 29 de janeiro de 2017

MAD MEN & SÃO PAULO, SOCIEDADE ANÔNIMA




 É curioso pensar o que um filme brasileiro dos anos 60 e uma série americana dos anos 2010 tem em comum. Em primeiro lugar, ambas se passam na mesma época: os anos 60. Além do fato das duas produções se passarem em grandes metrópoles, Mad Men em Nova York e São Paulo, Sociedade Anônima na capital paulista. Mas o aspecto principal que as duas séries têm em comum, é o fato que ambas têm como protagonistas homens bem-sucedidos profissionalmente e na vida amorosa. Que têm uma vida confortável financeiramente, são bonitos, tem casos com mulheres atraentes e possuem famílias “perfeitas”, com uma esposa dedicada e filhos lindos.

No entanto, os dois sentem uma infelicidade, um sentimento de vazio difícil de se explicar quando se tem tudo. Ambos se sentem sufocados pelo selvagem ambiente corporativo em que estão inseridos, mas o curioso é que os dois são verdadeiros predadores capitalistas, fazendo de tudo para alcançar os seus objetivos profissionais, seja passando por cima de um colega de trabalho, seja abusando psicologicamente dos seus subordinados. Ou seja, Tanto Carlos (São Paulo, Sociedade Anônima), quanto Don Draper (Mad Men) são vítimas do próprio feroz ambiente corporativo e capitalista que eles mesmos alimentam e ajudam a sustentar.

Em uma das falas mais famosas de Mad Men, Don Drapar diz a uma de suas amantes: “O que você chama de amor foi inventado por caras como eu para vender meias calça”.  E curioso perceber que o protagonista de Mad Men ao mesmo tempo em que nega o amor, não se envolvendo verdadeiramente com ninguém, usa o mesmo como argumento de vendas em suas peças publicitárias. Mas mesmo negando o sentimento, há momentos ao longo da série em que Draper é tocado verdadeiramente pelo sentimento “criado para vender meias calça”.  E é essa dualidade e contradição que fazem de Draper um dos personagens mais interessantes a aparecer na televisão nos últimos tempos.

O drama de Draper gira em torno da incessante busca sobre a sua verdadeira identidade. O personagem que na infância era Dick, um garoto caipira criado no campo, com um pai autoritário e sem nenhuma expectativa de vida, se vê perdido quando é enviado para lutar na guerra da Coréia e tem de lidar com uma situação extrema de sobrevivência. No entanto, tudo muda quando Dick toma a identidade de Don Draper, o seu comandante de batalhão que morre em um bombardeio. Sem perspectivas de vida como o simplório Dick, o agora Don Draper vê uma oportunidade de assumir uma identidade nova e consequentemente de ter uma vida nova, agora na cidade grande, com grandes oportunidades. Com o passar dos anos, Draper consegue se dar bem na gigante Nova York e se mostra um homem de raro talento criativo que se encaixa perfeitamente na emergente indústria publicitária americana. No entanto, no decorrer da série, Don se depara com diversas crises existenciais, questionando se de fato ele se encaixa naquele mundo perfeito. Mas ao mesmo tempo não quer voltar para a sua antiga realidade. E isso se reflete nos seus relacionamentos, tanto profissionais como pessoais, ele nunca consegue de fato se entregar e assumir aquele papel, sempre mantendo uma certa distância das pessoas. E um grande catalisador para esse comportamento de Draper é a natureza impessoal e feroz das grandes cidades e do capitalismo que as sustenta. Essa natureza nos leva ao nosso segundo personagem analisado, Carlos, de São Paulo, Sociedade Anônima.

Assim como Draper, Carlos é impessoal, cruel e impassível, e isso faz com que tenha sucesso no ambiente capitalista de outra grande metrópole, São Paulo. Ao mesmo tempo em que esse ambiente se encaixa perfeitamente com a personalidade de Carlos, de certa forma também faz mal para ele. Que aos poucos vai percebendo que toda aquela selvageria travestida de sucesso não traz a verdadeira felicidade. Percebe-se então que Carlos também vive de certa forma uma crise de identidade, apesar de ser em menor grau que a de Draper, não deixa de ser um problema de identidade. Tudo o que ele julgava ser o ideal de sucesso, um bom emprego e uma família perfeita se mostra insuficiente. O vazio e a infelicidade sentida pelo personagem escancaram que a identidade que Carlos acreditou ter por toda a sua vida, não se tratava de fato do verdadeiro “eu” do personagem. O ritmo alucinante de São Paulo, bem como a sua natureza feroz fazem com que Carlos se sinta acuado e desconfortável, levando o personagem a tomar a mesma atitude drástica que Don Draper em Mad Men.

Quando confrontado com os seus verdadeiros sentimentos face a “vida perfeita” na cidade grande, Carlos não vê alternativa a não ser fugir daquele modelo de felicidade destruído, assim como Don Draper faz em Mad Men. No entanto, enquanto que na produção brasileira, Carlos fracassa na sua tentativa de fuga e acaba retornando involuntariamente para São Paulo, no seriado americano Don Draper simplesmente desaparece da sua antiga vida, fugindo de Nova York, do seu emprego e da sua família sem deixar rastros.
Uma vez que Draper já mudou de vida e identidade antes, é mais fácil para ele mudar novamente, por isso a decisão dos autores de Mad Men em dar esse fim ao personagem. Enquanto que Carlos nunca mudou de ambiente e identidade, apesar da crise existencial no fim do filme, a mudança é algo novo para ele. Por isso a decisão do diretor de fazer com que o caminhão que pegou carona para fugir de São Paulo acabe voltando para a própria capital paulista, uma maneira metafórica de dizer que o personagem acaba sempre no epicentro das suas contradições, o lugar em que mais ama e também o que mais odeia.


sábado, 7 de janeiro de 2017

ANIMAIS NOTURNOS


Um conto perturbador e visceral sobre vingança. Com toques apimentados de thriller psicológico e simbolismos sutis, porém marcantes. Essa seria uma boa definição em poucas palavras para o novo filme do estilista americano Tom Ford.

Animais Noturnos se inicia quando Susan Morrow (Amy Adams), uma renomada curadora de arte, recebe do seu ex-marido Edward Sheffield (Jake Gyllenhaal) um livro que ele escreveu dedicado a ela. No entanto, o livro está longe de ser uma homenagem para a ex-esposa, muito pelo contrário, no romance Edward embute uma série de referências negativas ao relacionamento dos dois e a personalidade cruel da amada. Na história escrita por Edward, uma família composta de um casal e uma filha decide fazer uma road trip para o Texas, no entanto, uma série de eventos trágicos e perturbadores acontecem durante a viagem. O personagem do marido é claramente inspirado em Edward, assim como a esposa é claramente inspirada em Susan e a filha inspirada na filha de Susan na vida real.
Susan rapidamente percebe todas as referências da história e se identifica, ao mesmo tempo em que fica seriamente perturbada pelos acontecimentos chocantes e tão reais do livro. Essa é basicamente a premissa principal do filme, que se desenvolve todo em Susan lendo o livro ao mesmo tempo em que somos transportados diretamente para a imaginação da personagem que dá vida a história.

Vale ressaltar novamente que o diretor, Tom Ford, trabalhava como estilista, tendo atuado em empresas de renome do mundo da moda, como a italiana Gucci. E naturalmente a sua preocupação estética trazida dos tempos de estilista é muita bem utilizada no filme. Os enquadramentos são muito bonitos e bem realizados, quase como se fossem um retrato de moda. Assim como o uso da paleta de cores que também é muito interessante, enquanto as cenas do mundo real são carregadas de cores fortes e vibrantes, a cenas do livro são cheias de tons marrons e beges, dando um ar sujo e visceral ao romance escrito pelo ex-marido.


No entanto, o grande mérito da direção é sem dúvida o uso de simbolismos muito bem colocados. Logo na cena inicial vemos uma série de modelos gordas nuas dançando de forma sensualizada. Só a cena em si já é impactante, acrescente também todo o simbolismo inteligente que ela traz e a mesma fica ainda mais grandiosa.  Essa cena faz parte da sequência inicial que mostra uma exposição de arte em que Susan é curadora, que tem como tema esculturas de mulheres gordas e nuas com fantasias de fetiches masculinos (animadora de torcida, dançarina e etc). Em suma, essa cena mostra como a personagem principal é vista pelo ex-marido como uma mulher cínica, que assim como não tem pudor de mostrar mulheres gordas como obra de arte, invertendo o padrão de beleza, também abusa do cinismo na vida real, em especial no relacionamento entre os dois. Essa cena serve de alicerce para todo o desenvolvimento da história e da personagem.

Outro simbolismo muito interessante acontece com a ajuda da montagem do filme, que mostra elementos em comum que conectam um personagem de uma cena, com outro personagem da cena seguinte. Como por exemplo em uma cena em que o marido da história do livro está tomando chuva em momento desesperador da trama, e em seguida há um corte para uma cena em que Susan está com a mesma expressão de desespero só que agora tomando banho, com a água do chuveiro caindo como se a fosse a chuva da cena anterior.   A direção e a montagem usam desse recurso para dar a ideia de que a história contada no livro e a história real são uma só. Susan está literalmente mergulhada na história, quase que a vivendo de fato.


O curioso é que apesar de se identificar tanto com a trama do livro, Susan não se imagina ela mesma no papel que de fato é dela, diferente de como ela enxerga os personagens do ex marido e da filha, iguais aos da realidade. Quando são mostradas as cenas do livro, a personagem da esposa não é vivida por Amy Adams, e sim por Isla Fischer, sendo que as atrizes são muito parecidas fisicamente, e isso não é de forma alguma acidental.Susan imagina o seu personagem como uma mulher extremamente semelhante a ela, é como se o subconsciente dela não permitisse que ela se imaginasse 100% igual a sua aparência na história, tamanho o choque e o nível de perturbação e identificação que a história causou nela.


Quanto as atuações, todos os protagonistas estão muito bem em seus papeis. O curioso é que apesar de ser a protagonista do filme, Amy Adams não brilha tanto, muito por conta da trama do longa se focar na história do livro, em que ela não aparece. Apesar disso ela cumpre muito bem o seu papel e não deixa nada a desejar.

O grande destaque fica por conta do também excelente Jake Gyllenhaal, que mostra todo o desespero e as fraquezas do Edward, o ator transmite muito bem essas emoções e constrói de forma muito convincente o seu personagem. Outros 2 membros do elenco que merecem grande destaque são Michael Shannon (Boardwalk Empire) no papel do hilário e durão policial Bobby Andes, e o irreconhecível Aaron Johnson (Kick Ass), no papel do “vilão” do filme, o criminoso Ray Marcus. Enquanto que Shannon é um alívio cômico muito bem-vindo a um filme tão pesado como esse, Johnson está particularmente tenebroso e contribui em grande parte para o ar tenso do filme.


Concluindo, Animais Noturnos é um filme forte, pesado, que prende o expectador na cadeira. Mas também é um filme com um componente artístico muito presente, seja pelas belas imagens, seja pelos simbolismos e metáforas visuais. Em suma, é filme destinado aos amantes de um bom suspense e que não abrem mão de uma pitada artística caprichada. Enfim, é um filme para os amantes do bom cinema!

 Animais Noturnos


domingo, 1 de janeiro de 2017

3%


Primeira série brasileira da Netflix, 3% se passa em um futuro distópico onde a população é dividida entre o povo que mora no continente (na pobreza absoluta) e a elite que mora no Maralto (na riqueza, com abundância de recursos). Quando completam 20 anos todos os moradores do continente têm direito a prestar uma prova de admissão para morar no Maralto, exame conhecido como “O Processo”. Neste processo seletivo os participantes são avaliados nos mais diversos quesitos, como inteligência, força física e liderança. No entanto, a prova só admite 3 % do total dos participantes, e quem não passa na prova não pode voltar a participar nunca mais, ficando condenado a pobreza.

É com essa trama que a série dirigida por Pedro Aguilera é apresentada ao público. À primeira vista a série parece cair no clichê que se tornou o gênero de distopias adolescentes como Jogos Vorazes, Divergente e Maze Runer. Em parte 3% é sim muito parecida com essas produções norte americanas, no entanto, não deixa de lado a crítica social de pano de fundo ao entretenimento, assim as primeiras distopias da literatura e do cinema como 1984, Admirável Mundo Novo e Metrópoles. É claro que 3% não chega aos pés desses clássicos, no entanto, bebe muito da fonte deles no que tange a temática da luta de classes e do governo totalitário.

A principal crítica de 3% é uma clara alusão ao processo do vestibular, e o seu sistema “meritocrático”.  A série questiona até que ponto essa meritocracia é de fato verdadeira, se realmente é levado em conta apenas o mérito puro e simples nesses tipos de processos seletivos. No seriado, os avaliadores do Processo permitem que alguns candidatos trapaceiem e que usem de jogo sujo em algumas provas, mostrando que não é apenas o mérito que está em jogo nessa avaliação. Assim como o vestibular que se vende como um processo meritocrático, mas que não considera as diferenças entre estudantes de escola pública e particular.

 O ponto forte da série é que ela é muito instigante, cada episódio deixa ganchos  que fazem com que o telespectador queira maratonar 3%. A trama é muito boa, e consegue cumprir muito bem o papel que um bom roteiro de seriado deve ter, despertar a curiosidade da audiência para saber logo o que acontece no episódio seguinte e fazer com que o expectador assista a vários capítulos em sequência, mantendo o interesse na série. No entanto, apesar do roteiro da história em si ser muito bem construído e instigante, alguns diálogos da série deixam muito a desejar, abusando de explicações desnecessárias e tornando algumas falas um tanto quanto toscas.

Os grandes pontos negativos da série com certeza são o elenco de apoio e os diálogos. Ao contrário do elenco principal que conta com atores muito bons como Bianca Comparato (A Menina sem Qualidades) e João Miguel (Estômago), o elenco de apoio é composto por atores que beiram o amadorismo, em parte pela falta de expressão e em parte principalmente pela baixa qualidade dos diálogos. Os diálogos são muitas vezes excessivamente explicativos, ao invés de mostrar com ações o que os personagens estão sentindo, os roteiristas tentam explica-las através dos diálogos. Por exemplo: O personagem diz em voz alta que está muito triste com determinada situação, ao invés de apenas ser mostrada a sua expressão de tristeza. Nesse ponto, alguns dos diálogos da série lembram muito os diálogos de novelas, altamente explicativos para garantir que o telespectador entenda o que está acontecendo.

Sobre as atuações do elenco principal, estas são muito boas, especialmente as de Bianca Comparato no papel de Michele e de João Miguel no papel de Ezequiel. Bianca trabalhou em diversas novelas da Globo, mas apesar disso tem um estilo de atuação bem cinematográfica, trabalhando muito bem com as expressões, sobretudo as expressões mais contidas. Enquanto que João Miguel, que já tem uma carreira maior no cinema, dá um verdadeiro show como avaliador do Processo, com uma interpretação que possui várias camadas, o ator vai da frieza ao desespero, mostrando bem toda a complexidade desse que de fato é personagem mais interessante da série.

Por fim, apesar de algumas falhas, 3% é um vento novo muito bem-vinda a produção do audiovisual brasileiro. Num país conhecido pela qualidade dos seus filmes mais cults, mas que ainda peca no cinema mais comercial, a série representa algo novo e de qualidade (caso contrário a Netflix não teria acreditado no projeto). Primeiro porque 3% é uma série nacional, tipo de produção bem escassa no Brasil, realidade que finalmente está mudando devido a lei de incentivo as produções de audiovisual brasileiro que renderam outras belas produções como Magnífica 70 e O Negócio. Segundo porque trata de um gênero pouquíssimo abordado nas produções tupiniquins, Ficção Científica e Distopia.

Concluindo, 3% é indicado tanto para os fãs de distopias adolescentes, quanto para os fãs das distopias mais hardcore, como 1984 e Admiravél Mundo Novo. Em maior grau aos fãs das distopias adolescentes, mas há na série elementos que também cativarão fãs menos radicais das distopias antigas. É uma série muito fácil de maratonar para os expectadores que tem essa prática, principalmente devido a sua narrativa rápida e instigante. Por fim, para quem quer ver uma produção brasileira de qualidade e diferente do habitual, 3% é uma excelente pedida!